A emissão da licença de instalação para a remoção do Pedral do Lourenço, no trecho navegável do rio Tocantins, no Pará, acentuou divergências entre os entes federais responsáveis pela infraestrutura hidroviária e os órgãos de fiscalização ambiental. A autorização, concedida pelo Ibama, ocorre dois anos após a emissão da licença prévia do mesmo empreendimento.
Segundo o documento mais recente, o DNIT – Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes está autorizado a realizar o derrocamento de uma formação rochosa de 35 km, além da dragagem de bancos de areia ao longo de um trecho de 177 km. O objetivo declarado é garantir a navegabilidade da hidrovia Tocantins-Araguaia, especialmente nos períodos de estiagem.
A decisão, porém, foi contestada poucas horas depois pelo Ministério Público Federal no Pará, que considera o processo irregular. A Procuradoria da República afirma que houve descumprimento de obrigações legais, incluindo a ausência de consultas prévias a comunidades tradicionais e a inexistência de diagnóstico atualizado da pesca artesanal na área afetada.
Diagnósticos inconclusivos
O estudo e relatório de impacto ambiental, sob responsabilidade do próprio DNIT, identifica aproximadamente 6.500 pescadores diretamente afetados pela obra. O número, no entanto, é questionado por colônias e associações locais, que estimam uma população pesqueira superior a 12 mil pessoas.
Além da discrepância nos dados, técnicos do Ibama já haviam alertado, em pareceres anteriores, para a carência de informações consistentes sobre as atividades pesqueiras e seus reflexos sociais. Esses alertas constam de análises realizadas entre 2019 e 2020, ainda durante a fase de elaboração da licença prévia.
Pesquisadores que monitoram obras similares na região apontam que a pesca artesanal no entorno do Pedral do Lourenço está ligada a um modo de vida tradicional, com relevância socioeconômica para dezenas de comunidades distribuídas entre os municípios de Itupiranga, Marabá e Tucuruí.
Consulta prévia ignorada
O MPF também menciona a ausência de consulta livre, prévia e informada, prevista pela Convenção 169 da OIT – Organização Internacional do Trabalho, que possui força de lei no Brasil. Essa obrigação legal é reconhecida quando comunidades tradicionais podem ser afetadas por obras ou projetos com repercussão direta sobre seu território e modo de subsistência.
Segundo lideranças locais, desde as primeiras tratativas do projeto, o Ibama não considerou oficialmente os ribeirinhos da região como comunidades tradicionais. Denúncias sobre essa exclusão foram formalizadas em 2021 e, conforme o MPF, não houve alteração na conduta da autarquia até a emissão da licença atual.
A consulta prévia é uma etapa independente dos estudos técnicos e constitui requisito legal autônomo para a validação de empreendimentos em áreas habitadas por populações reconhecidas como tradicionais. O não cumprimento dessa etapa pode comprometer a legalidade do processo de licenciamento.
Controvérsia jurídica em andamento
Do ponto de vista jurídico, a autorização concedida pelo Ibama entra em conflito com decisões anteriores do próprio Poder Judiciário. Em 2021, a Justiça Federal em Marabá determinou que não houvesse prosseguimento no processo de licenciamento da hidrovia até que todas as comunidades potencialmente afetadas fossem consultadas.
A nova licença, portanto, reabre uma disputa judicial e pode ser objeto de medidas cautelares. A Procuradoria da República no Pará já manifestou publicamente sua intenção de recorrer à Justiça para contestar a validade da autorização, com base na suposta violação das chamadas medidas condicionantes.
Entre essas medidas estão exigências técnicas, socioeconômicas e ambientais estabelecidas como pré-requisito para a realização de obras com potencial de interferência em cadeias produtivas locais, como é o caso da pesca artesanal.
Perspectivas logísticas e pressão regional
O governo do Pará considera o empreendimento essencial para o escoamento de cargas da região, sobretudo na ligação hidroviária entre Marabá e Barcarena, onde está localizado o Porto de Vila do Conde. A expectativa é aumentar a movimentação fluvial de mercadorias, reduzindo a dependência de rodovias e diminuindo custos logísticos.
Entidades ligadas à navegação interior afirmam que a navegabilidade plena do rio Tocantins durante o período seco poderá ampliar a competitividade do modal hidroviário na Amazônia Oriental, que hoje opera com restrições em vários trechos.
Essa visão, contudo, esbarra em variáveis ambientais e sociais que ainda não foram equacionadas de forma consensual. A ausência de clareza sobre os efeitos da obra sobre o meio aquático e sobre as atividades extrativistas pode comprometer a viabilidade institucional do projeto.
EIA/Rima e responsabilidades institucionais
O estudo e relatório de impacto ambiental é um dos instrumentos mais importantes de licenciamento no Brasil. Nele, o proponente do empreendimento deve apresentar um diagnóstico detalhado da área afetada, os riscos ambientais previstos, os impactos sociais esperados e as medidas de mitigação propostas. O relatório é elaborado por consultorias técnicas contratadas pelo empreendedor, mas sua análise cabe ao órgão licenciador.
No caso do Pedral do Lourenço, o EIA/Rima não foi suficiente para dirimir dúvidas apontadas por pareceres internos do próprio Ibama, nem para atender às exigências do MPF e das comunidades locais. Isso coloca o processo sob risco de questionamento administrativo e judicial, comprometendo a sua continuidade sem ajustes.
Comunicação e transparência
A falta de comunicação adequada entre os órgãos envolvidos e as comunidades tradicionais afetadas é um dos pontos centrais do debate. A desarticulação institucional, somada à resistência das comunidades pesqueiras em aceitar o projeto, expõe fragilidades no atual modelo de governança ambiental para obras de infraestrutura.
A situação do Pedral do Lourenço evidencia que projetos hidroviários em regiões socialmente sensíveis ainda exigem aprimoramentos no processo de licenciamento. Isso inclui maior precisão nos estudos socioeconômicos, respeito ao direito à consulta e transparência nas decisões públicas.
Implicações para o setor de infraestrutura
Para o setor de infraestrutura de transportes, o episódio revela a importância de compatibilizar projetos logísticos com o respeito às normas ambientais e aos direitos coletivos. A previsão de obras com interferência em comunidades tradicionais deve considerar não apenas a viabilidade técnica, mas também os limites legais e institucionais impostos pela legislação brasileira.
Licenças concedidas sob contestação jurídica expõem empreendimentos a incertezas operacionais e riscos reputacionais. Para investidores e operadores logísticos, esse tipo de impasse demanda atenção redobrada e acompanhamento contínuo das fases de planejamento, aprovação e execução.
Perguntas Frequentes
1 – Qual a diferença entre licença prévia e licença de instalação? A licença prévia atesta a viabilidade ambiental do projeto e define diretrizes para sua continuidade. Já a licença de instalação autoriza o início da obra, desde que as exigências estabelecidas na etapa anterior tenham sido cumpridas.
2 – O que caracteriza uma comunidade tradicional no licenciamento ambiental? Comunidades tradicionais são grupos culturalmente distintos, que mantêm modos de vida próprios e utilizam recursos naturais de forma sustentável. Para obras em seus territórios, a legislação exige consulta prévia, livre e informada.
3 – Qual a responsabilidade do DNIT no processo de licenciamento? O DNIT é o proponente do empreendimento e responsável pela elaboração dos estudos ambientais. Cabe ao Ibama analisar os documentos e decidir sobre a emissão das licenças, mas o DNIT responde por eventuais falhas nas informações prestadas.